Enquanto boiava e me debatia incessante nas minhas trivialidades de sempre, quieto no meu banco, começo a reparar na conversa da moça no banco de trás. Ao que parece, usava um certo sistema no escritório, e trocaram-no contra seu gosto; agora, desejavam dela funções que, já havia avisado, não poderia cumprir no novo sistema, e nesse samba da incompreensão ameaçaram a coitada até com demissão. Bem, isso não tem a mínima importância para esse post: me importa a voz dela!
Não havia visto seu rosto, não fazia idéia de quem estava logo atrás de mim, tão inconformada e instável. A voz me lembrava alguém, pero quemquemquem... quem? Depois de alguns metros de Avenida Rebouças, cinquina e bingo, a tia Cleide! A Cleide me deu aula no pré-primário lá no começo dos anos 90, fechou a minha alfabetização, e me acompanhou no palco quando eu fui o pequeno orador da turma na formatura, lendo aos trancos o discurso escrito em uma sulfite séria para a platéia distraida.
Foi gostosa a lembrança, um saborzinho saudoso gostoso de receber no fim de uma tarde escura de vento. Continuei ouvindo um pouco da desgraça profissional da mulher, achando que aquela voz não era a de quem se exalta frequentemente como ali, vendo a Cleide mais jovem ali pertinho.
Chega minha parada, Paulista, e ao me virar vejo uma mulher com um rosto que deve se parecer muito com o que foi a Cleide jovem!!!
Há tipos físicos bem próprios que vemos perdidos pelo mundo, em lugares e condições bem distintos, que juraríamos ser irmãos ou primos. Pacotes de cabelo, formato de nariz, bochechas, olhar, curva do pescoço, tipo de pele, grossura da boca... como se fossem "raças" de homens, como nos cães. Formas próprias, famílias de seres destacados de um núcleo filiadas à mesma escola de design ou studio, padrões que a ciência ainda não agrupou. Sei de especialistasque podem dizer, por exemplo, de que região da Itália é a família do neto de imigrante, só pelas indicações da face, muito intrigante.
Essa menina tinha o mesmo nariz de tendência equina (que elas nunca me leiam!), as bochechas ósseas delgadas na vertical, o cabelo escorrido cor de noz, os olhos pouco abertos em formato de amêndoa levemente inclinados para os lados, a pele de tendência inconstante nas maçãs de rosto, os dedos longos. Notei tudo isso no flash em que pude olhar para ela, ou vi algum ponto mais destacado e construo o resto em minha cabeça, difícil discernir. Provável que, dada a vontade de rever a Cleide, ou sendo mais honesto, a vontade de ter 6 anos e passar a tarde com a mão no guache com um chapéu na cabeça, eu tenha construído quase tudo através da voz.
O desejo foi de que a Cleide envelhecesse um pouco, descesse na Paulista e fosse na Livraria Cultura, terminar de me ensinar a ler enquanto eu acabava "A árvore dos desejos", do Faulkner, sentado nos puffs sob o dragão de madeira do teto.